Vejam bem, eu posso até tentar, mas nada do que eu escrever aqui vai dar a você a noção da magnitude desse encontro. Nada. Eu, que sou prolixo em tudo, me vi sem palavras, e voltei a ser o menino tímido que sempre fui, antes de descobrir a arrogância como estratagema de camuflagem dessa timidez.
Eu nasci no Alcântara, cara. O centro nervoso de uma cidade proletária abandonada, cujo sonho da maioria de seus moradores é a fuga. Fui criança no Mutuá, bairro mais periférico ainda dessa mesma cidade, e depois cresci no mesmo Alcântara, na fronteira com o Jardim Catarina – onde vivi muito. É fácil falar em ídolos quando se convive com eles, ou os encontra na padaria da esquina (a idolatria deve ser muito mais amena no Leblon). Meus ídolos eram figuras impossíveis, tão distantes quanto constelações, personagens inverossímeis de um universo a mim vedado.
Herdei de meu pai a paixão pelo Flamengo, e cresci sob a égide de um time imbatível, aquele Flamengo da década de 80, campeão de tudo. A Gávea era um Olimpo, e a grama nascia onde pisavam os deuses. Naquela época despontava no imaginário do infante uma figura imponente, clássica, um herói chamado Zico. Acompanhei seus dias de glória com uma dimensão muito mais mitológica, sob os olhos de uma criança. Não entendia de futebol, de adultos ou de mercado, apenas de heróis e vilões. Vi meu herói ascender, vi seu sacrifício, seu exílio e sua volta. Sua jornada épica só ajudava a consolidar o mito, sua sombra dava abrigo.
Meu pai ainda tentou várias vezes que eu e meu irmão pudéssemos estar perto do ídolo. Um vizinho nosso foi roupeiro da Seleção de 82 (sim, aquela mesmo), e tivemos a oportunidade de estar em seu embarque para a Espanha. Conheci todos os jogadores, vi a materialização daqueles personagens da televisão em carne e osso: Sócrates, Júnior, Falcão, Valdir Peres, Carlos, Oscar... Menos Zico. Zico já era estrela, e ficava em um lugar separado. No Maracanã e no Caio Martins, meu velho nos levava aos vestiários, mas Zico nunca estava. Uma vez achamos que o encontraríamos no estacionamento do Maraca, mas ele já havia partido. O campeão da aldeia continuava um personagem, desumanizado, Herói.
Cresci, e um de meus ofícios mais apaixonados – a literatura – me levou a lugares um pouco mais distantes que São Gonçalo – em geografia e metafísica. Minha militância na Arte me angariou algum respeito e consideração de meus pares (minha literatura ainda não igualou essa parada, mas não está longe), e uma série de acontecimentos fortuitos meu levou a jogar no Pindorama F.C., a Seleção Brasileira de Escritores. Eu, peladeiro ocasional e não muito entusiasmado – mesmo que esforçado - agora componho a zaga de um selecionado de futebol composto basicamente por escritores. E foi marcado, por intermédio de nosso goleiro Marcos Eduardo Neves (autor da biografia de Heleno de Freitas), um jogo com o time do Zico.
Sério, não tinha como eu ficar pilhado. Eu estive próximo de conhecer Zico várias vezes, e nunca pude fazê-lo. Era difícil crer que desta vez funcionaria. Que minha letras tortas abririam o caminho que meu pai não conseguira, e que finalmente eu veria meu ídolo de perto. Sei lá, você pode até rir, mas era como conhecer Hércules, Rocky Balboa, ou Jesus.
No sábado coloquei minha família dentro do carro e parti. Mesmo após chegar no CFZ – Centro de Futebol Zico, criado e gerido pelo Galo – meu ceticismo persistia. “Ah, ele vai ligar e dizer que não poderia comparecer”, ou “A agenda não bateu”. Encontrei o Amílcar Pereira logo na entrada que me disse: “nem dormi”. Invejei sua esperança, e naquele momento eu queria ter podido alimentar essa ilusão também, mas os desencontros haviam sido tantos, que não queria, depois de 38 anos e pai, ver as rugas da decepção infantil voltarem a meu rosto. Outros foram chegando e dando seus relatos, e eu impassível. Até que Zico chegou.
Minha esposa sorriu e me disse: “É o Zico no carro”. Eu fiquei na linha de visada, esperando para ver quem ia saltar. Lembrei-me de todos aqueles momentos com meu pai, de todos os jogos, de meu irmão e amigos flamenguistas, e o que o Galo representava em tudo isso. Zico desceu do carro, e eu fiquei com vergonha até de olhar pra ele. Voltei aos seis anos e me escondi, saindo de seu olhar, como se aquilo fosse uma heresia. Eu não me senti digno.
Fomos para o campo, aquela ansiedade toda crescendo – era real! – e chegou o time adversário, Zico e seus amigos. De quebra, o vovô garoto, o Maestro Leovegildo Lins da Gama Júnior fazia parte do escrete. Engraçado, ainda murmurei um “Fala, Léo” para o Júnior, em uma forçada intimidade. Mas não tive coragem de falar com o Zico.
Entrei no segundo tempo para tentar compor a zaga – já perdíamos de muito, e o primeiro cara que eu teria que marcar era justamente o Zico. Ali, no campo, ao lado do craque, do mito, do ídolo. E com a blasfema missão de evitar que ele fizesse o que justamente o definia em minha mente infantil, ser craque. Joguei os trinta e cinco minutos ali, disputando bola. Em minha cabeça ecoavam nomes de vários zagueiros do passado que sofreram para cumprir tão injusta missão que agora era a minha, do garoto gordinho do Mutuá que nunca era escolhido para o primeiro time da pelada. Em um momento gritei para meu companheiro de zaga e letras, o poeta Romulo Narducci: “Romulo, marca o Zico, o Zico é teu” – e ele riu pra mim, indignado. Rimos juntos.
O jogo acabou em vitória – para eles – e em confraternização – para a gente. Fotos, autógrafos, abraços. Eu não consegui murmurar sequer um “obrigado”. Não disse ao Zico quantas vezes estive perto de conhecê-lo, e tive que engolir a frustração. Não contei de meu pai, de meu irmão, ou da sensação de alegria em vê-lo agigantar-se em campo, mesmo lá da arquibancada do velho Maracanã. De volta aos 6 anos, as barreiras e estratagemas que criei para driblar a timidez caíram, e eu só conseguia sorrir, e me sentir iluminado por finalmente estar na presença dele.
Isso foi há dois dias, e o sorriso permanece. Obrigado, poesia. Obrigado, meu pai. Obrigado, Zico.