terça-feira, 8 de julho de 2014

Uma resenha "aperitivo" do escritor Rodrigo Santos sobre o embate de logo mais...

Daqui a pouco, às 17h haverá o embate entre as seleções brasileira e alemã, os alemães entrarão em campo com as cores do Flamengo, para tentar trazer mais adeptos e a apoio em campo. Pelas ruas, um dos temas centrais sem duvidas é essa partida e também brincadeiras do tipo: "FlAlemanha" será a campeã no Maracanã como o referido clube da Gávea. Pois bem, o velho clubismo, como sempre, onipresente. 

Venho lendo inúmeras manifestações e mais uma, oriunda Facebook me chamou atenção. Mais uma vez do escritor tavernista Rodrigo Santos,  mesclando futebol com literatura (clique aqui, para ler a primeira crônica). Uma prática que vem tornando-se cada vez mais rara na grande mídia, cada vez mais pragmática e alimentada por furos de reportagens ou por matérias motivacionais entrevistando torcedores ou familiares dos jogadores e etc. Pois bem, segue abaixo mais um texto do Rodrigo, embora atual, de (in)certa maneira é uma viagem no tempo.

Rodrigo Santos em ação lendo seu conto no evento Futebolendo no Clube Comary em Teresópolis/RJ

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#RESENHA
 
A TERCEIRA VÉRTEBRA DO HOMEM DE PALHA
Antes de Brasil x Alemanha, 8/7/14, Semifinal da Copa do Mundo

Tudo morre, tudo renasce. A lagarta morre para que nasça a borboleta, a semente morre para que nasça a planta, o mamute morreu para que tivéssemos petróleo e... não, peraí, nada a ver essa parada de mamute (melhor cortar na hora da revisão). O sol morre para renascer no dia seguinte, em um ciclo infindável de dinamismo tanatológico e partogênese. O ser humano é o único animal que tem consciência da própria morte, e, ao observar a natureza, criou fantasias mirabolantes de permanência individual – não nos basta virarmos pasto e compostagem, queremos continuar torcendo para o Flamengo e gostando de estrogonofe sem champignon ad aeternum.

Apegamo-nos tanto a nossas ideias de permanência que criamos gerentes para controlar essa rotatividade, e demos a eles os mais variados nomes de deuses. Então oferecíamos a morte a esses deuses, em troca de benesses e condescendência. Os celtas criavam um imenso homem de palha, e colocavam dentro dele malfeitores e criminosos (ou algum Amarildo). Depois, queimavam a palha, assando os pobres coitados lá dentro, em sacrifício ao deus Taranis, que além de controlar os trovões (a forma proto-celta é Toranos – que deve ter sido a origem do nome Thor) deu a roda (opa!) à humanidade. A queima do Homem de Palha acalmava Taranis, que em troca devia dar boa colheita (nesse tempo, tudo se resumia a colheitas decentes e fornicações ilegítimas, legitimadas pelo rito).

Matamos também os próprios deuses, para que renasçam (como o sol) mais fortes, e gerem abundância, prosperidade e escrituras que mandam pobres coitados interfonarem nas manhãs de domingo para serem enxovalhados (para, mesma coisa do mamute, cortar na revisão). A morte do deus servia de égide para crer na permanência, e nos dava confiança para seguir em frente. Bel, Krishna, Mitra, matamos todos, para que o ciclo desse reboot, e em torno de seus renascimentos construímos nosso imaginário de confiança. Um desses deuses mortos uniu um império e todo o mundo ocidental, e seu símbolo maior conforta e faz crer na vitória, estampado em camisas, lábaros e pendurado em cordões.

Até a sexta-feira passada éramos um bando. Jogadores de grande valia, vindo de todas as partes do mundo, vestiriam a amarelinha e se tornariam um time. Mas isso não aconteceu. Esperávamos que a amálgama de talentos variados formasse uma equipe imbatível, que a soma das partes fosse maior que o todo, tudo em vão. Dependemos até aqui de talentos individuais, laivos criativos e poderes únicos, principalmente da estrela maior de nosso time. Seus pés ligeiros criaram a plasticidade que tanto nos orgulha e os gols que tanto nos alegram. E ele se esforçou. Tentou ignorar a autopromoção em que é imerso desde muito cedo. Criou, armou, assistiu, marcou. Porém, ainda assim, não éramos um time, continuávamos sendo um cata-cata de luxo, um conselho de classe de doutores que não formavam um corpo docente. Carecíamos de mais, precisávamos que a chuva caísse sobre os gramados das estéreis e impessoais arenas. Precisávamos de um sacrifício que nos irmanasse em prol de uma causa maior, um lábaro a que seguir.

E veio o sacrifício. Aos 41 minutos do segundo tempo de uma batalha acirrada, com os ventos da vitória a balançar nossos moicanos, nosso Homem de Palha é imolado. Covardemente atingido por uma joelhada nas costas, o deus cai. Suas lágrimas fecundam a terra, e o novo ciclo se impõe.
Não havíamos sido um time porque nada nos irmanava. O hino coxinha que jorrava das arquibancadas não era suficiente, a sagrada camisa canarinho era pouco. Precisávamos de um deus morto, uma imagem a ser estampada no pendão mais alto, a mortalha de um povo que se destinasse a ser rota na batalha. A queda de nosso menino herói nos torna mais fortes e cria o lábaro sangrento a ser empunhado na vanguarda. A mesma joelhada que danificou (temporariamente) a terceira vértebra de Neymar fez girar o ciclo da colheita novamente, e como Constantinos delirantes, vimos ali o signo de nossa vitória.


Que venham os alemães, saudáveis e risonhos, com a velha disciplina tática temperada com o dendê aqui encontrado. Somos agora o time do Neymar, a aldeia a venerar o seu Homem de Palha queimado. Desfraldado o pano da terceira vértebra ferida, venceremos com folga, e seguiremos triunfantes para o embate final no Maracanã, o nó górgio tecido há séculos pelas Parcas. Marcharemos em colunas assimétricas contra nossos Hermanos, pois assim como a morte do deus Sol dura apenas uma noite, o choro de nosso herói nos renova a fé na boa colheita, e na vitória indiscutível. 

E o futebol renascerá em um novo ciclo, sob a égide do Homem de Palha Queimado – e quebrado.


Rodrigo Santos é pai do Miguel, marido de Maria Isabel, flamenguista, professor, corredor de rua e escritor. 

Um comentário:

  1. Meus cumprimentos a vc Rodrigão, velho camarada.
    Parabéns por suas belas e sábias palavras.
    Nogueira

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